Punch-Drunk Love: o amor e a oportunidade narcísica
- Gabriela Alejandra Ferraiole Testa
- 29 de out.
- 15 min de leitura
O ponto de partida

Barry Egan veste um terno azul para um trabalho que ele ainda não tem. Conserta um instrumento musical cujo nome ele desconhece. Acumula milhas para uma viagem que ele não sabe qual é. Barry é um homem à espera, mas ele não sabe de quê. De certo modo, mesmo antes de se envolver com Lena, o estranho e solitário protagonista do filme Punch-Drunk Love¹ já era um homem propício ao amor.
No início do longa, ao percorrer os corredores de um supermercado, Barry se dirige aos produtos nas estantes, perguntando: o que eu estou procurando? Pedindo: falem comigo. Em tese, ele quer coletar cupons promocionais de certos produtos para revertê-los em milhas aéreas, "um tipo de moeda". Observamos, contudo, neste breve diálogo com objetos inanimados, o encurtamento da distância entre alimento e objeto amoroso, sua confusão reveladora de uma equivalência inconsciente, e a condição famélica do protagonista. A busca de Barry é mais do que pecuniária. É uma busca por: oportunidade, deslocamento, ligação.
O Barry da primeira metade do filme se movimenta, sem foco, em curto-circuito, entre os domínios de Eros e Tânatos.
Sua busca tem, a princípio, uma falsa meta. Um lugar de mais-valia a ser outorgado pelo improvável sucesso profissional.
O advento do amor é marcado por uma catástrofe (ou revolução, ou convulsão). Certa manhã, em frente à oficina mecânica onde está localizado o seu pequeno escritório, um carro vermelho capota. Barry é a única testemunha do acidente. Luz e som explodem, abalando os seus sentidos. Em seguida, um instrumento musical, o harmônio, é descarregado de outro veículo vermelho e deixado aos seus pés, sem explicação. Barry o toma para si, sem razão. Na mesma manhã, uma mulher vestida de vermelho o aborda e lhe entrega a chave de seu carro. Em sequência enigmática, sob o signo do encontro com Lena, a mulher da chave, violência e insinuação erótica (que são vermelhas) se infiltram na vida de Barry (que é azul). Assim o amor é introduzido. O amor é o ponto de partida do sujeito e da trama.
Barry fragmentado
Na cena em que Barry estoura as portas de vidro da sala da irmã aos pontapés, a sua face está oculta pelos paineis estilhaçados. Na mesma cena, nos é dada uma pista na forma de um adorno na parede: um porta-retrato com seu rosto, expressão acanhada. A cisão é violenta. De um lado o sujeito retraído, do outro o corpo que explode.
Somos levados a entender que Barry, em outras circunstâncias praticamente indefeso diante da exploração e dos ataques alheios, em especial frente ao comportamento invasivo e controlador das irmãs, às vezes surta e quebra tudo. Os surtos, no entanto, parecem ser atos de pura descarga física, sem qualquer intenção de intimidar ou inibir seus agressores.
Quando Lena e Barry saem para jantar juntos pela primeira vez, o diálogo do casal é um jogo de desvelamentos sutis. Lena faz uma confissão, mas Barry não sabe se deve acreditar nela. Depois, ele conta uma história sobre um radialista cuja franqueza admira. Lena faz uma pergunta inadvertidamente delicada e ele hesita antes de responder. Através das palavras, eles tateiam as bordas um do outro, ao mesmo tempo que a tensão de Barry expõe a subjacência de um dilema: o desejo de revelar, para ser visto, e o medo das consequências nefárias da exposição.
A harmonia entre os personagens é colocada à prova quando Lena menciona uma história constrangedora que soube por meio da irmã de Barry. Claramente atordoado, mas tentando manter o semblante gentil, ele responde que não se lembra daquilo e que a irmã é mentirosa. Em seguida, se levanta, vai ao banheiro, e, num surto, quebra tudo ali dentro. Ao ser interpelado pelo gerente do restaurante, Barry nega qualquer responsabilidade pelo que aconteceu e tenta encobrir as evidências de sua culpa com mentiras absurdas.
Barry mente mal e Barry mente muito. Aquilo que ele tenta obliterar com suas mentiras torna-se ainda mais evidente por causa delas. Isso nos leva a supor que as mentiras de Barry são pouco convincentes porque sua função principal não é persuadir. Elas são, na realidade, parte de um mecanismo defensivo precário e compulsivo por excelência.
Uma digressão teórica se faz necessária para o destrinchamento dessa hipótese. A leitura que se segue busca compreender Barry por meio de uma articulação entre os processos identificatórios freudianos e o conceito de tradução laplancheano. O nexo entre os dois caminhos teóricos está na maneira como cada autor elabora o risco de alienação de si próprio associado à fundação do sujeito a partir de sua relação com o outro.
O estranho que habita em mim: a sombra do objeto recai sobre o Eu
Pouco antes de começar a se relacionar com Lena, Barry depara-se, no jornal, com o seguinte anúncio: "Você está pronto para uma relação íntima? Encontre o amor! Fale em tempo real!" Mas o que o leva a entrar em contato com o serviço de disque-sexo não é exatamente a busca por sexo. Na realidade, sua ação parece menos ligada a um objetivo específico do que à tentativa de reverter sua situação atual. Relação íntima, amor e sexo são alguns dos destinos possíveis de quem almeja abandonar a solidão. E Barry, que sabe tão pouco dos outros quanto de si mesmo, parece ser, em múltiplos sentidos, um homem devastado pela solidão.
O anúncio no jornal faz uma promessa de conexão por um preço. O preço, em princípio, são alguns dólares por minuto de ligação. No entanto, a cobrança verdadeira é feita na moeda da informação e do acesso. O serviço de disque-sexo é uma fachada para uma quadrilha de golpistas com quem Barry acaba compartilhando sua identidade, endereço e dados bancários. Por causa disso, ele se torna vítima de uma série de injúrias, agressões físicas e tentativas de extorsão.
Os golpistas parecem servir, no enredo, de proxy para a família de Barry. O que parte de um pressuposto amoroso/erótico, opera de fato como uma entidade que sujeita o protagonista à humilhação (na fala repetida dos golpistas: “isso que dá ser tarado”), à exploração e ao perigo mortífero. Em uma leitura psicanalítica, as ações da quadrilha são comparáveis às ações psíquicas de uma instância superegoica incapacitante, fusionada à pulsão de morte, cuja mensagem ao Eu, ecoando a mensagem familiar, é: você não vale nada, você merece sofrer. Ainda nesta leitura, observa-se ali, portanto, uma radicalização da disposição sádica típica do Supereu em relação ao Eu², que examinaremos a seguir em diálogo com a perspectiva do trabalho melancólico na constituição do Eu.
Em Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade³, Freud indica que, no início da vida psíquica, o encontro com o corpo do outro enceta um circuito pulsional que logo descobre modos de satisfação autoerótica. Nesta fase, as zonas erógenas ainda não estão submetidas a uma ordem hierárquica e as pulsões parciais atuam nelas de forma independente umas das outras.
Já na passagem ao narcisismo primário, trabalhada em Introdução ao narcisismo⁴, descobrimos que é a partir da relação especular com suas figuras de cuidado que o bebê começa a se constituir como unidade imaginária. O Eu ideal, primeira imagem de completude do sujeito, responsável pela unificação das pulsões sob uma forma totalizante, é formado através de um processo de identificação com os ideais narcísicos projetados pelos adultos sobre a criança, para quem ela seria “portadora de todas as perfeições”⁴. É importante destacar que a fantasia de completude, marca dessa fase, encontra sustento numa imagem própria que, no entanto, é absolutamente alienada ao olhar do outro. A identificação primária é centrada no imperativo simbólico do outro parental, presente nos mandatos endogâmicos⁵. Eles dizem: tens de ser.
A partir do narcisismo secundário, etapa balizada pelas identificações secundárias, a libido antes investida no objeto retorna dessexualizada e modifica o Eu por meio da introjeção da lei e da absorção de traços do objeto. Nasce então o Ideal de eu e, com ele, a possibilidade de construção de um projeto identificatório. O sujeito, que agora fala, passa a dizer: ‘não sou, mas posso ser’.
Freud recupera essa noção em O Eu e o Id², articulando-a à formação do Supereu, instância psíquica herdeira do Complexo de Édipo, da qual o Ideal de eu faz parte. É constatado que tanto a formação do Supereu quanto o trabalho melancólico são processos definidos por uma perda objetal importante e pela instauração de agências psíquicas que, identificadas de alguma forma com o objeto perdido, vigiam e punem o Eu. A melancolia, contudo, tem particularidades que justificam seu status patológico. A sanha do Supereu contra o Eu do melancólico é particularmente brutal. Além de operar sobre ele como vigília derivada da introjeção da autoridade “dos mais imponentes objetos”², o Supereu dirige uma carga sobressalente de hostilidade ao Eu do melancólico. Esse tema será aprofundado por Freud em Luto e Melancolia⁶.
A relação do melancólico com seu objeto de amor é permeada por uma ambivalência expressiva. Alvo de forte fixação, o objeto, ao mesmo tempo, fere e decepciona o sujeito. Quando o investimento amoroso falha, a libido que se solta do objeto não volta a se ligar a novos objetos. Ela se retira para o Eu e promove a identificação do Eu com a figura de amor. “A sombra do objeto recai sobre o Eu”⁶, formulação freudiana clássica para descrever o destino melancólico, sinaliza que o Eu fica aprisionado ao molde do outro e será, a partir daí, tratado como ele. Assim, a relação com o objeto amoroso é, de certa maneira, preservada: ela passa a acontecer no interior da própria pessoa. Isso impede, no entanto, a elaboração da perda, e significa que a revolta que antes vilipendiava a figura de amor frustrante passa a atingir o Eu com a mesma intensidade. O melancólico, portanto, não consegue superar o jugo dos mandados endogâmicos (“tens de ser”) para a construção perene de si mesmo através da formulação e reformulação de projetos identificatórios. Amordaçado pelo outro que o habita, ele é impedido de encontrar sua própria voz.
Se os golpistas são seu proxy, as irmãs de Barry funcionam, na trama, como as representantes originais deste objeto amoroso frustrante e ambivalente. Elas encarnam a dualidade própria do objeto na relação melancólica, oferecendo ternura tingida de agressão e um lugar de pertencimento que, simultaneamente, marginaliza o sujeito. O amor que Barry poderia dirigir a elas é inseparável do ressentimento e da dor, matriz da violência interior que o subjuga e constringe o seu Eu. Não resta dúvidas de que o Barry que encontramos no início do filme vive isolado, mas o aspecto mais trágico de sua solidão é que ele ainda parece ser, para si próprio, um desconhecido.
O estranho que habita em mim: o fracasso absoluto da tradução
Laplanche⁷ identifica, em sua formulação da situação originária da sedução, um tipo de alteridade caracterizado por uma dissimetria radical na relação adulto-infans. Está presente no adulto e ausente na criança, já que nesta ainda não pôde se constituir, uma das maiores descobertas psicanalíticas: o inconsciente sexual, formado pelos resíduos infantis, perverso no sentido dos Três ensaios⁷. A tese de Laplanche é de que este inconsciente, o inconsciente infantil do adulto, reativado na situação adulto-infans, intervém unilateralmente na criança, comunicando-se desde o princípio com ela através de mensagens enigmáticas. O receptor se apropria delas por meio da tentativa de tradução e seu fracasso.
Segundo o autor, no encontro do bebê com o adulto, nomeado de situação antropológica fundamental, há uma implantação do outro no sujeito. Aquilo que vem do outro porta sentido, não é “fato puro” ou mesmo “fato puro traumático”⁷. Por exemplo, a amamentação, tomada como modelo típico da comunicação adulto–infans, nos permite depreender uma teia complexa e ambivalente formada de “amor e ódio, alívio e excitação, leite e seio, seio continente e seio excitado sexualmente”⁸. Sua montagem tem elementos que excedem a idealização narcísica dos pais em relação ao infante, pois conta com a infiltração do inconsciente sexual do adulto, enigmático para ele próprio.
A implantação das mensagens enigmáticas no sujeito forma, a princípio, o núcleo do inconsciente encravado. A revivificação destas mensagens, sua tentativa posterior de tradução por meio da simbolização, é experimentada no psiquismo como um corpo estranho interno que deve ser controlado e integrado a todo momento. Ao mesmo tempo, os códigos inatos ou adquiridos de que o infans dispõe são insuficientes para decifrá-las com êxito⁸. Essa operação de tradução, que é, portanto, sempre parcial e falha, dá origem às diferentes dimensões do aparelho psíquico, conforme o grau de sucesso ou fracasso na assimilação das mensagens.
De acordo com Laplanche⁸, o sucesso parcial da tradução funda o pré-consciente, instância de historização mais ou menos coerente do sujeito. O seu fracasso parcial dá origem ao inconsciente “clássico”, neurótico-normal, correlativo ao pré-consciente. O inconsciente encravado, por sua vez, é convertido em um reservatório das mensagens que sofreram um fracasso radical de tradução, isto é, fincaram-se no psiquismo tal como foram transmitidas, corpos invasores em estado puro, sem correlato com o pré-consciente.
O inconsciente encravado está relacionado à recusa, a defesa psicótica ou borderline, em oposição ao recalque neurótico. Esse processo, que acontece quando o sujeito vê, mas não acredita naquilo da realidade que lhe é insuportável, passa ao largo da simbolização, manifestando-se por meio de sintomas que são “o reflexo invertido do que é recusado”⁸, assim como da somatização bruta, desprovida de sentido. São formas de retorno do não traduzido, distintas das conversões e das fantasias neuróticas, que envolvem algum grau de tradução por meio do trabalho simbólico de elaboração do recalcado.
Examinando o comportamento de Barry, nos deparamos com um caso quase paradigmático de uso de defesas não-neuróticas. Os surtos de Barry indicam, por meio da explosão somática, a falência absoluta de tradução da mensagem incompreensível, violenta e ambivalente, do outro. A mentira também pode ser interpretada como uma forma de recusa. Barry não é capaz de elaborar o que o invade. Ao invés disso, tenta apagar o acontecimento, instaurando uma realidade paralela onde o evento traumático pode ser evitado e não há vergonha ou culpa; em outras palavras, a mentira opera como um discurso que é ato, que é o reflexo invertido do recusado.
Observamos que, embora por um processo diferente, o sujeito rendido pelo inconsciente encravado encontra-se, assim como aquele cujo Eu foi constituído de modo predominante pelo trabalho melancólico, aprisionado ao outro que o habita.

Figura 1 – Ilustração retirada de Três acepções da palavra “inconsciente” no âmbito da teoria da sedução generalizada, de Jean Laplanche, em Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano (2000–2006).
O pensamento laplancheano unifica os modelos da neurose e da psicose sob uma mesma tópica anímica. O inconsciente recalcado e o pré-consciente estariam separados entre si por uma barreira horizontal, e manteriam o inconsciente encravado à parte por uma barreira vertical. Nos sujeitos em que há o predomínio de um funcionamento neurótico, o segmento recalcado/pré-consciente (A) é significativamente maior do que a porção encravada (B). Na psicose, o inconsciente encravado (B) é mais vasto.
Laplanche⁸ generaliza a clivagem do Eu, descrita por Freud⁹ como específica de certos indivíduos, e defende a ideia de um funcionamento duplo, neurótico e psicótico, em todos os seres humanos. Esta inovação metapsicológica implica em um deslizamento possível entre as posições neuróticas e psicóticas ao longo da vida de um mesmo indivíduo, através do circuito contínuo das traduções e retraduções das mensagens do outro.
Amor: o estranho que me transforma

Do nosso primeiro encontro com o outro, conforme vamos nascendo enquanto sujeitos, nasce junto um tipo de solidão ligada às mensagens implantadas em nós. A cada novo encontro, quando nos comunicamos, o outro em nós também fala em línguas mais ou menos decifradas. Já as novas mensagens que nos alcançam podem ser igualmente peculiares, parecidas, às vezes, com um harmônio, com um carro capotado ou com uma chave. Podem ser, em alguns casos, complementares a uma predisposição: algo que enfim chega a uma pessoa que espera.
Se o instrumento musical deixado aos pés de Barry no início do filme é signo da mensagem recebida de Lena, vale a pena prestar atenção no tratamento que lhe é dado: como ameaça, em sua chegada; como âncora, em um momento de desespero; como objeto danificado que pode ser reparado; como linguagem a ser aprendida e transformada em música.
Os temas sonoros utilizados no filme estão fortemente integrados à trama, servindo para expressar os matizes emocionais do protagonista. As valsas românticas e os ritmos percussivos frenéticos nos dão notícia do que se passa no interior de Barry, mesmo quando é evidente a disjunção entre a situação em que o personagem se encontra e sua expressão verbal e corporal. Por isso, quando as primeiras notas que Barry faz soar do harmônio acompanham o compasso desse fundo musical, testemunhamos algo singular. É como se pela primeira vez um objeto ligado à realidade externa pudesse entrar em sintonia com a frequência de seu mundo anímico.
No entanto, se o harmônio está atrelado ao encontro com Lena e é um dos signos de sua “mensagem”, com que voz, dela ou dele, fala o som produzido quando Barry toca? A dica é dada pelo próprio filme.
Lena: Sabe aquele harmônio que foi parar no seu escritório?
Barry: Harmônio…?
Lena: O piano. Você o roubou da rua?
Barry: Como…?
Lena: Você roubou, não?
Barry: Sim… Por que? É seu?
Lena: Não, é seu.
Pela chave laplancheana, é possível compreender o harmônio como uma mensagem em processo de tradução. Ela incide no aparelho psíquico e o perturba, pedindo para ser decifrada. Mas isso não acontece de pronto ou totalmente. Durante partes do filme, o harmônio permanece em silêncio. Em outros momentos, Barry o manuseia, faz experimentos, brinca com ele. A tradução é lenta, incompleta. Uma qualidade fronteiriça, quase paradoxal, define o instrumento. Ele é roubado, mas pertence a Barry; nele coexistem o estrangeiro e o familiar.
Em oposição às irmãs e aos golpistas, Lena, ao se comunicar, convida ao invés de impor, se interessa ao invés de ridicularizar, deseja ao invés de usar. A partir do encontro com ela, é ampliado em Barry um campo possível de tradução, de apropriação simbólica constitutiva de subjetividade. O amor se alia a um narcisismo fundante e o revigora. No filme, essa relação transformadora está contida na moldura do par romântico. Mas este não é o único e nem precisa ser o principal enquadre de relação que pode contribuir para a edificação do Eu por meio da tradução do enigmático. Laplanche aponta, por exemplo, para um potencial análogo como propriedade do trabalho analítico, a partir do encontro da dupla analista/analisando⁸.
O diálogo transcrito a seguir nos ajuda a ampliar a reflexão tomando como base o outro eixo teórico que compõe nossa análise, os processos identificatórios freudianos:
Barry: Desculpe, eu esqueci de me barbear.
Lena: Seu rosto é tão adorável. Sua pele e sua bochecha. Eu quero mordê-la. Eu quero morder e mastigar a sua bochecha. É tão fofa.
Barry: Olhando pro seu rosto, eu quero esmagá-lo. Eu quero arrebentá-lo com um martelo e te apertar, você é tão linda.
Lena: Eu quero mastigar o seu rosto e quero arrancar os seus olhos e comê-los, mastigá-los e chupá-los.
Barry: Ok. Isso é engraçado. Isso é gostoso.
(Eles se beijam)
Barry: No restaurante, eu quebrei o banheiro. Me desculpe.
É interessante que o diálogo comece com Barry pedindo desculpas pela barba por fazer, como se precisasse, de modo muito concreto, omitir da relação qualquer vestígio de si que pudesse de algum modo ferir ou marcar o outro. A resposta de Lena, no entanto, envolve a pele de Barry, tal como ela é, em um olhar de ternura, ao mesmo tempo que entrega sua própria agressividade em um embrulho carinhoso. A partir daí vemos como violência e afeto, Tânatos e Eros, passam a confluir em um vínculo capaz de sustentar ambos.
Essa dinâmica parece ter um efeito sublimatório sobre as pulsões destrutivas de Barry, facilitando sua incursão no laço simbólico por meio da inscrição linguística. Ao invés de recusar a violência por meio da mentira, como vinha fazendo, ele a transforma em palavra: admite, num espelho da linguagem de Lena, ficar tão comovido com o rosto da amada que sente vontade de arrebentá-lo com um martelo. Além disso, assume que destruiu o banheiro do restaurante e pede desculpas. Ele se apropria desse ato passado de violência e consegue, desse modo, circunscrevê-lo fora do ato, começando a se responsabilizar pelo impacto de seu comportamento sobre o outro.
Aos poucos, assistimos como Barry vai deslocando o apaixonamento voraz do início da relação para uma forma de amor que suporta a separação e reconhece mais plenamente a alteridade de Lena. Em um primeiro momento, o romance eleva Barry a um estado eufórico que aparenta ser alimentado por um sentimento de onipotência e completude, análogo à fase do Eu ideal. É nesse estado que ele enfrenta os golpistas e suas irmãs, o que o leva, no confronto, a afirmar: “Eu tenho um amor na vida… Isso me torna mais forte do que você imagina.” No entanto, ao mesmo tempo, ele comete um erro que magoa Lena e coloca em risco a relação. Buscando reparação, ele promete a ela que tomará cuidado para não repetir o deslize e que, dali por diante, se esforçará para acompanhá-la melhor. Esse movimento remete à saída do mandato endogâmico para construção de um Ideal de eu: ainda não sou o que você pede, mas posso ser.
No início do longa, o amor é o ponto de partida do sujeito. Na conclusão do filme, Barry está debruçado sobre o harmônio quando Lena se aproxima e o abraça por trás, sussurrando em seu ouvido: “Lá vamos nós”. O amor, enfim, toma o rumo de uma aventura compartilhada.
Referências
¹ ANDERSON, Paul Thomas. Punch-Drunk Love. Estados Unidos: Columbia Pictures, 2002. 1 filme (95 min), son., color.
² FREUD, Sigmund. O Eu e o ID, “Autobiografia” e outros textos (1923-1925). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. (Obras completas, v. 16)
³ FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. (Obras completas, v. 6)
⁴ FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
⁵ PAIM Filho, Ignácio A.; GARCIA, Raquel Moreno (Orgs.). Identificação: imanência de um conceito. São Paulo: Editora Edgard Blücher Ltda., 2023.
⁶ FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Tradução de Marilene Carone; textos de Maria Rita Kehl, Modesto Carone e Urania Tourinho Peres. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
⁷ LAPLANCHE, Jean. A partir da situação antropológica fundamental. In: LAPLANCHE, Jean. Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano (2000–2006). Trad. Vanise Dresch; Marcelo Marques. Porto Alegre: Dublinense, 2015
⁸ LAPLANCHE, Jean. Três acepções da palavra “inconsciente” no âmbito da teoria da sedução generalizada. In: LAPLANCHE, Jean. Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano (2000–2006). Trad. Vanise Dresch e Marcelo Marques. Porto Alegre: Dublinense, 2015. p. 190–206.
⁹ FREUD, Sigmund. A clivagem do eu no processo de defesa (1938). In: FREUD, Sigmund. Moisés e o monoteísmo, esboço de psicanálise e outros textos (1937-1939). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


