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O Continente Verde de Edward Lear (parte III)

  • Foto do escritor: Gabriela Alejandra Ferraiole Testa
    Gabriela Alejandra Ferraiole Testa
  • 16 de abr.
  • 5 min de leitura

O enigmático idioma do absurdo


Freud discute o horror de nos descobrirmos expostos àquilo que remete ao texto oculto de nossa história em O Infamiliar (1919/2019). Nesse ensaio, ele parte do sentimento angustiante do infamiliar (tradução para o português da palavra-conceito alemã unheimlich), suscitado por certas vivências e obras literárias, para argumentar que na base deste incômodo encontram-se ideias arcaicas parcialmente superadas, ligadas a desejos e medos recalcados. Entre elas, figuram crenças em pensamentos onipotentes capazes de se materializar magicamente na realidade. Freud exemplifica esse aspecto do infamiliar com uma tendência encontrada em alguns neuróticos obsessivos de acreditar que seus pensamentos antecedem eventos diretamente ligados a eles. Seria o caso de alguém que pensa em uma árvore caída e, no mesmo dia, ao encontrar uma árvore caída no caminho para o trabalho, acaba pressupondo uma relação entre os fatores. Para alguns obsessivos, o relato de experiências assim é comum. Não é só o elemento da coincidência, entretanto, que caracteriza o infamiliar. 

Há alguns anos, vivi uma experiência que me causou uma sensação arrepiante de infamiliaridade. Certa tarde, após um longo dia na faculdade, peguei um ônibus para ir à casa de um amigo. Era um trajeto habitual para mim. Sentei ao lado da janela e abri O Mestre e Margarida, um romance de Mikhail Bulgákov. Em uma das cenas, Berlioz, um editor de revistas simpático, porém meio arrogante, tem um encontro mal-afortunado com o Diabo, que visitava Moscou disfarçado de mágico. Na sequência, Berlioz escorrega em óleo de girassol e é subitamente decapitado por um bonde em alta velocidade. Aquela morte horrível acentuou o sentimento de que algo estranho acontecia na periferia da minha visão. Levantei os olhos e, para minha surpresa, percebi que não reconhecia onde estava. Embora eu fizesse aquela viagem regularmente, dessa vez, de alguma maneira, tinha entrado no ônibus errado.  Olhei pela janela à procura de algo que me ajudasse a me localizar, e meu coração deu um salto. Na primeira placa de rua que avistei, lia-se “Berlioz”. 

Eu nunca fui uma pessoa supersticiosa, mas diante dessa coincidência medonha fiquei com a impressão de ter recebido uma mensagem importante que eu não podia decifrar definitivamente e cujo remetente era algo… demoníaco. No creo en brujas, pero que las hay, las hay, diria meu pai, com seu sotaque argentino. A sequência de eventos daquela tarde compõe uma cena infamiliar, na qual medos infantis relacionados a complexos edípicos e a presença do duplo ou retorno do mesmo são esperados: o ônibus que eu jurava ser um, mas era outro; a morte súbita de Berlioz seguida pelo surgimento da placa com o mesmo nome; a cabeça decepada, castrada; a presença implícita do Diabo lançando uma sombra agourenta sobre tudo. 

Aliás, o Diabo e o horror infamiliar são cúmplices de longa data. Nesse sentido, o infamiliar frequentemente se apresenta como uma charada perturbadora e aparentemente indecifrável, uma provocação sinistra que exige uma resposta impossível. De acordo com Freud:

O infamiliar da epilepsia e da loucura tem a mesma origem. O leigo tem aqui, diante de si, a expressão de forças que ele não imaginara à volta dele, mas cujo movimento podia ser percebido, obscuro, num canto remoto da própria personalidade. A Idade Média atribuíra, de maneira consequente e, ao mesmo tempo, psicologicamente quase correta, todas essas manifestações de doenças a efeitos demoníacos. Não me admiraria ouvir que a psicanálise, ocupada em descobrir essas forças misteriosas, tornou-se, ela mesma, infamiliar para muitas pessoas. (1919/2019)


Gostaria de me deter, por ora, em um aspecto específico dessa filiação entre o infamiliar e o demoníaco, com objetivo de lançar luz a seu entendimento mais geral. Existe uma concepção de fala demoníaca enigmática, volta e meia representada no imaginário popular, que se ajusta bem ao conceito de infamiliar concebido por Freud. A charada da Esfinge de Tebas, a besta derrotada por Édipo, é um de seus representantes mais famosos. Outro exemplo mais moderno encontra-se na canção Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, inspirada, aliás, na mesma obra de Bulgákov que quase me matou de susto. Nela, Mick Jagger encarna Lúcifer ao provocar o ouvinte: “Prazer em conhecê-lo, espero que você adivinhe o meu nome.” E complementa: “Mas o que te confunde mesmo é a natureza do meu jogo.” Afinal, como é possível uma pessoa adivinhar o que não sabe? A astúcia só nos ajuda até certo ponto, como mostra o mito de Édipo: após responder corretamente à charada da Esfinge e não ser devorado por ela, Édipo acaba sendo “devorado” pela charada maior que ele não pôde responder -  o mistério de sua própria origem. Talvez a charada do Diabo não possa ser respondida por meio da sorte ou da inteligência, mas apenas pelo exame perigoso de nossa própria vida, dos segredos que guardamos de nós mesmos. -

Em O Infamiliar, Freud investiga as origens da palavra alemã heimlich (“familiar”), da qual é derivada a palavra unheimlich (“infamiliar”), e revela uma curiosa ambiguidade no seu sentido original. No alemão antigo, heimlich significava tanto o que é “pertencente à casa, não estranho, familiar, domesticado, conhecido e aconchegante”; quanto algo encoberto, escondido, “como se tivesse algo a ocultar”, “amor, paixão, pecado”. Essa dualidade está no bojo do conceito de infamiliar, ou seja, infamiliar é aquilo que um dia foi conhecido e próximo, mas que se tornou estranho por estar oculto, e que ao reaparecer de modo inesperado provoca uma angústia peculiar.

Mais uma vez, os “desejos imorredouros e recalcados da infância” estão por trás de tudo. Segundo Freud, “o infamiliar da vivência existe quando complexos infantis recalcados são revividos por meio de uma impressão ou quando crenças primitivas superadas parecem novamente confirmadas. (…) Quando pensamos que as crenças primitivas se acoplam no mais íntimo aos complexos infantis e, de fato, nele se enraízam, não nos admiramos muito com o desaparecimento dessas delimitações”.


Figura 5. James Joyce, The Cat and the Devil (NY: Dood & Mead 1964), ilustração Richard Erdoes
Figura 5. James Joyce, The Cat and the Devil (NY: Dood & Mead 1964), ilustração Richard Erdoes

Ao descrever o idioma do Diabo em uma história feita para o neto de quatro anos, James Joyce produz o que, a meu ver, é um encontro perfeito entre o demoníaco e o infantil: “O diabo fala principalmente uma língua própria chamada Bellsybabble que ele mesmo inventa à medida que fala mas quando ele fica muito bravo ele consegue falar um francês muito ruim muito bem embora alguns que o ouviram digam que ele tem um sotaque dublinense forte”. 

Assim como nos limeriques de Edward Lear, que, aliás, faziam um tremendo sucesso entre as crianças, o que realça o fator infantil no excerto de Joyce é o absurdo. Ao pensar na língua do Diabo como uma língua do tabu e o tabu como o fator infantil encoberto, faz sentido que a língua enigmática do Diabo seja, na realidade, uma expressão do que é infantil. Além disso, que sua gramática, assim como a do inconsciente, contraste com a lógica da razão, revelando-se a gramática do nonsense e do absurdo. 

 
 
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